sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Conto(-te) #8

Quando acordou, não fazia ideia onde estava. As pessoas circulavam à sua volta, em passo acelerado e mecânico. Uma luminosidade forte, um branco ofuscante envolviam-na. Fechou os olhos e as lágrimas escorregaram: percebia agora onde estava, percebia agora o que acontecera.

Era uma noite como tantas outras. Uma espécie de catarse de final de semana: copos e amigos, os acontecimentos triviais do trabalho e as novidades sociais.
Ele observou-a durante algum tempo, até finalmente se aproximar: um cumprimento atrevido, alguns clichés de deliciar os egos mais frágeis, trocas de sorrisos e olhares ávidos. Ao terminar a noite, ela pegou na caneta e escreveu o seu número. Durante largos meses, a paixão apoderou-se do seu coração, toldando-lhe o discernimento.

Voltou a abrir os olhos, mas a luz parecia estar mais forte. Virou o rosto num gesto inconsciente: a dor atravessou-a como uma lâmina. As lágrimas, cansadas e doridas, despontaram dos olhos, novamente fechados: percebia agora o erro que tinha sido aquela noite, percebia agora que não tinha escrito o seu número, mas assinado a sua sentença.

As noites de catarse foram sendo cada vez mais raras, até desaparecerem por completo da sua agenda. Também os amigos começaram a revelar-se ausentes, sendo substituídos por ele: aquele homem sedutor, que lhe estava destinado, que era o seu porto de abrigo, o homem da sua vida. Aquele homem que também se foi revelando diferente, mais autoritário, mais agressivo.
A relação passou a ser um ciclo de momentos de paixão imensurável e cega, seguidos de momentos de agressão, que testavam cada vez mais os limites humanos, de afastamentos e pseudodecisões definitivas e, por fim, de reconciliações com promessas de mudança.

Não conseguia parar as lágrimas. Pensava no seu corpo, sujo e inútil; pensava na sua alma, fraca e solitária. Recordava as mãos enormes que lhe apertavam o pescoço, roubando-lhe o pouco ar que sentia ter, os repetidos pontapés de fúria que a faziam encolher-se, como se quisesse voltar ao útero da sua mãe, como se quisesse voltar a nascer. E queria: ter uma vida nova, começar de novo.
Um médico aproximou-se: pegou-lhe na mão, limpou-lhe uma lágrima que escapava, morta. Era altura de dizer a verdade, de acabar com a vergonha que a consumia: percebia agora que era vítima de si própria, percebia agora que o verdadeiro agressor escondia-se dentro de si.
Abriu os olhos, apertou a mão do médico.

Não estava sozinha.

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